Lei da Liberdade Econômica: o contrato é meu e eu faço o que eu quiser?
- Luana Delazzari
- 4 de mar. de 2020
- 7 min de leitura
Antes de adentrar-se ao âmago da questão relativa a interferência da Lei nº13.874/2019 no âmbito contratual, necessário se faz, mesmo que de forma singela, tecer algumas considerações inerentes às questões principiológicas envolvendo os contratos.
O antigo Código Civil de 1916 trazia em seu bojo e interpretação a principiologia clássica, influenciada pelo sistema contratual francês. As concepções tinham base na forma tradicional de contratar, buscando a garantia de igualdade meramente formal. Nesse norte, o sistema contratual era composto e norteado pelo princípio da autonomia da vontade, caracterizada, em suma, pela liberdade de decidir em contratar ou não, com quem contratar, a elaboração das cláusulas contratuais e a mobilização ou não do Poder Judiciário em caso de descumprimento. Ainda, existia o princípio da obrigatoriedade contratual (pacta sunt servanda), o qual conduzia na manutenção do contrato celebrado e sua obrigatoriedade, ainda que o cumprimento do ajustado pudesse levar uma das partes à ruína. Por fim, o princípio da relatividade dos efeitos vinculava tão somente as partes contratantes, tendo efeito apenas inter partes.
Todavia, com o avanço da urbanização, desenvolvimento do capitalismo e a massificação contratual, surgiu uma nova principiologia, adotada pelo Código Civil de 2002. Assim, o Código Civil vigente adotou a Teoria Preceptiva de contratação, a qual dispõe que o contrato não trata-se de fenômeno proveniente apenas da vontade das partes, mas sim, de um fenômeno social e econômico. Em razão disso, passou-se a buscar quando da contratação a igualdade material entre os contratantes, em um verdadeiro diálogo de fontes de direito. Tanto é que o Enunciado 167, do CJF, elenca que, “com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos.”.
Nesse diapasão, a nova concepção principiológica retifica os princípios da teoria clássica, dando moderna roupagem aos mesmos, bem como acresce ao rol princípios de suma importância.
O princípio da autonomia da vontade passou a denominar-se de autonomia privada, a qual é conceituada como o poder que o ordenamento concede a cada indivíduo para contratar e criar as suas normas contratuais, mas dentro de determinados limites, observando o conjunto principiológico norteador dos contratos.
A obrigatoriedade contratual ainda se faz presente, todavia com eleição de casos nos quais é possível a atuação da vinculação compulsória entre as partes contratantes, como são os casos dos artigos 156, 157, 413 e 478, todos do Código Civil/2002.
Por sua vez, o princípio da relatividade dos efeitos contratuais também ganhou nova roupagem, na medida em que adota a teoria da Tutela Externa do Crédito, cujos efeitos da contratação é, ao mesmo tempo, interpartes e com efeito na sociedade como um todo. Nesse sentido, o Enunciado 21, do CJF, clareia que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.”.
O princípio da boa-fé objetiva se traduz, em suma, como o padrão de comportamento que impõe aos contratantes uma atuação honesta, proba e legal, tendo no ordenamento vigente as funções interpretativa, limitativa e integrativa.
O princípio da Justiça Contratual busca resguardar o equilíbrio nas contratações, seja na sua origem (equilíbrio genético), seja em sua execução (equilíbrio funcional).
Por fim, o princípio da função social busca assegurar a liberdade contratual dentro dos limites da função social do contrato. Nesse norte, o Enunciado 22, do CJF, elenca que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.”.
Nesse senário, restou promulgada a Lei n. 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), na qual, segundo Sílvio de Salvo Venosa e Luiza Wander Ruas (VENOSA, Sílvio de Salvo; RUAS, Luiza Wander. Interpretação dos negócios jurídicos e a liberdade econômica),
se depreende da leitura integral desses novos artigos é que o Executivo, agora com a chancela do Legislativo, almeja superar a persistente ineficiência estatal e estagnação para dar abertura para um novo momento, de maior liberdade, com investimentos, geração de renda, livre mercado e, enfim, desenvolvimento. Para esse novo momento de dinamismo econômico, inevitavelmente ajustes no ordenamento também se fazem necessários, já que o Direito, por vezes, pode impedir ou retardar que negócios se realizem da forma almejada. Esses ajustes demonstram, como não se duvida, como o Direito, a Economia e o desenvolvimento estão profundamente conectados.
Ainda segundo Sílvio de Salvo Venosa e Luiza Wander Ruas, “com os novos itens trazidos pela Lei 13.874 adiciona-se ao antigo artigo 113 do Código Civil parágrafos e incisos, com novas regras interpretativas para um negócio jurídico. Aliás, diga-se, todas essas regras introduzidas são de sobejo conhecidas na doutrina e utilizadas nos tribunais.”.
Regra o artigo 113, do Código Civil que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”. De acordo com Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. A “lei da liberdade econômica” (lei 13.874/19) e os seus principais impactos para o Direito Civil. Segunda parte),
O art. 113 do Código Civil traz em seu conteúdo a função de interpretação da boa-fé objetiva, dirigida a todos os negócios jurídicos em geral. O seu âmbito de incidência, portanto, não é somente o contrato, podendo o preceito ser aplicado ao casamento, ao testamento e a outros negócios jurídicos, patrimoniais ou não. Conforme o seu caput, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração, valorizando-se a importância das regras de tráfego.
Em idêntico sentido doutrina o Enunciado 409, da V Jornada de Direito Civil, afirmando que “os negócios jurídicos devem ser interpretados não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes.”.
Ainda sobre o artigo 113, do Código Civil, merece destaque a inclusão dos parágrafos 1º e 2º dada pela Lei 13.874/2019, os quais trazem regramento sobre a forma de interpretação das avenças contratuais. Consoante muito bem resume Flávio Tartuce,
Na redação do novo § 1º do art. 113 do Código Civil, a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: a) for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio, sendo vedado e não admitido o comportamento contraditório da parte, com ampla aplicação prática (venire contra factum proprium non potest); b) corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio, o que já está previsto no caput do comando, pela valorização das regras de tráfego; c) corresponder à boa-fé, o que igualmente se retira da norma anterior; d) for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e e) corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. Parece-me que as previsões relativas às letras b e c ficaram sem sentido após a retirada da aplicação restrita aos negócios empresariais.
No que pertine ao parágrafo 2º, novamente Flávio Tartuce (2019) narra que,
Adiante-se que a norma pode ser inócua em muitas situações, pois as partes de um negócio jurídico podem sim pactuar a respeito dessas questões, mas isso não afasta a eventual intervenção do Poder Judiciário em casos de abusos negociais ou em havendo a tão citada lesão a norma de ordem pública. Pode-se também sustentar que não haveria a necessidade de inclusão dessa previsão no texto legal, pois o seu conteúdo já vinha sendo admitido parcialmente pela doutrina brasileira, pelo teor do enunciado 23 da I Jornada de Direito Comercial. Porém, em alguns casos, especialmente em negócios paritários, pode ser muito útil para a prática a inclusão de determinada regra de interpretação contratual que não contravenha disposição absoluta de lei. A título de exemplo, imagine-se uma regra que determine que uma cláusula específica prevaleça sobre uma geral, ou vice-versa.
Ainda, a Lei 13.874/2019 ainda corrigiu a letra do artigo 421, do CC, o qual era doutrinariamente criticado pela utilização de duas terminologias inadequadas, quais sejam, “liberdade de contratar” e “em razão”, visto que o correto seria a terminologia liberdade contratual e a supressão do termo “em razão”, visto que a liberdade contratual advém da autonomia privada e não da função social do contrato. Assim sendo, a nova letra do artigo 421, do CC, passou a ser a seguinte: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.”.
Nesse ponto, Sílvio de Salvo Venosa e Luiza Wander Ruas aduzem que,
adentrando ao capítulo das disposições gerais dos contratos em geral, destacamos, agora, a nova redação do artigo 421 caput, em que alguns vocábulos foram alterados, mas que mantém a previsão de que a liberdade contratual está limitada pela função social do contrato. Essa função social deve estar em pauta sempre que as previsões contratuais atinjam interesses externos, interesses sociais além dos contratantes, como lecionado por Calixto Salomão. Esclareça-se que não se fala em aplicação da função social às partes contratantes em si, caso isso ocorresse levaria a tentativas assistemáticas e difusas de reequilíbrio contratual, que já estão atribuídas pelo princípio da boa-fé e pela cláusula rebus sic stantibus. O parágrafo único, ora introduzido, traz, como reiteradamente na lei 13.874, o princípio da intervenção mínima do Estado, devendo a revisão contratual estatal ou arbitral ser uma forma excepcional. Trata-se de norma programática que para ser efetivada depende do próprio Estado que ora e vez interfere nas contratações privadas. De qualquer forma, é um dispositivo esperançoso e que se coaduna com os demais da liberdade econômica, inclusive a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre as atividades econômicas.
Conclui Flávio Tartuce que,
Por tudo o que foi aqui analisado, nota-se que, em matéria de contratos, a lei da liberdade econômica procurou valorizar a autonomia privada e resolver antigos problemas técnicos que existiam no Código Civil, o que é louvável. Todavia, não se pode dizer que a autonomia privada, a força obrigatória do contrato e a tal intervenção mínima passaram a ser princípios contratuais inafastáveis e absolutos. Por óbvio que devem eles ser ponderados e mitigados frente a outros regramentos, caso das sempre citadas função social do contrato e boa-fé objetiva. Com isso, busca-se o eventual equilíbrio contratual perdido e a vedação dos abusos e excessos negociais, tão comuns em nosso país.
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