A função das empresas é só gerar lucro?
- Luana Delazzari
- 12 de fev. de 2020
- 5 min de leitura
A construção e valoração dos direitos humanos são reflexos das diversas interpretações históricas sociais do homem perante a morte. A consagração dos direitos humanos, principalmente após o término da Segunda Guerra Mundial, aflorou sobremaneira, sendo a esfera internacional tomada por diversos tratados regulamentando os mais diversos temas. Nessa senda, os direitos humanos foram amplamente difundidos no panorama mundial, sendo que, através do processo de internalização constitucional, os direitos humanos tornam-se direitos fundamentais. Nessa toada, a doutrina contemporânea, notadamente encabeçada pelo jurista italiano Norberto Bobbio, classificou os direitos fundamentais em gerações ou dimensões, condizentes com o contexto histórico-social ensejadores das mesmas. Assim sendo, os direitos fundamentais englobados nas dimensões possuem, “a priori”, mesma força normativa.
Com a internalização dos tratados firmados pelo Estado Brasileiro mediante a promulgação da Constituição Federal de 1988, restou salvaguardado os direitos fundamentais da primeira geração, consoante se vislumbra no caput do artigo 5º. No mesmo compasso, o rol de direitos fundamentais englobados na terceira dimensão, tais como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, quedou-se normatizado junto ao artigo 225, da Constituição Federal.
No entanto, com o advento do Capitalismo após as Revoluções Industriais, se vislumbrou a solidificação da mentalidade da busca por acúmulo e produção de riquezas. O direito à propriedade proveniente das primeiras concepções de delimitação dos poderes Estatais, bem como aqueles provenientes do próprio jusnaturalismo, integrantes da primeira geração de direitos fundamentais, se mostrou fortalecido.
Após a Segunda Guerra Mundial, a globalização tornou-se efetiva, alcançando os mais diversos meios. Nesse cenário, as empresas ganharam força econômica e protagonismo. A empresa caracterizada por ser uma atividade econômica organizada para a obtenção de lucratividade passou a ser responsável pela efetivação de direitos fundamentais, de forma horizontal, trazendo a instituição empresarial e aos seus administradores a responsabilidade de garantir e efetivar os direitos humanos elencados na Constituição Federal. Assim, atualmente, os direitos fundamentais são exigíveis em face do Estado e, também, em face das empresas, cuja expressão econômica e financeira culminou com o protagonismo partilhado com o Estado para garantir e promover os preceitos máximos constitucionais.
Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº201.819-8 Rio de Janeiro, sedimentou o dever as empresas em aplicar e garantir a efetivação dos direitos fundamentais, conforme ementa a seguir:
UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA [...]. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais […] (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 201.819-8; RELATORA ORIGINÁRIA : MIN. ELLEN GRACIE; RELATOR PARA O ACÓRDÃO : MIN. GILMAR MENDES; julgado em 11/10/2005) (grifamos).
Destarte, é possível exigir da empresa a aplicação e efetivação de direitos fundamentais. O novo modelo empresarial afastou-se da antiga prática de geração de lucros apenas para os acionistas, criando um modelo empresarial cuja lucratividade deve ser redirecionada ao acionista, mas com responsabilidade sócio solidária. Ou seja, o lucro é direcionado ao acionista, com a observação de que a atividade empresarial não deve somente gerar lucratividade aos seus sócios e acionistas, mas sim garantir e efetivar os direitos fundamentais de forma solidária com o Estado.
Percebe-se que a questão da lucratividade na atual concepção afasta-se da ideia de mera divisão de lucros, guardando intimidade, atualmente, com a preocupação social solidária de efetivação de políticas para garantir e promover os preceitos fundamentais elencados na Constituição Federal.
Consoante muito bem-posto por Jordana Viana Payão e Mariana Ribeiro Santiago (PAYÃO, Jordana Viana; SANTIAGO, Mariana Ribeiro. A Função Social e Solidária da Empresa no Âmbito das Relações de Trabalho. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC p.243):
A ordem constitucional inaugurada pela Carta Magna de 1988 possui, dentre outros méritos, o do reconhecimento da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social como pilares da sociedade, os quais ecoam nos mais diversos ramos do direito e da comunidade com um todo.
Diante desse quadro, a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social foram alçados à qualidade de vetores incontestes, e, consequentemente, o cenário econômico precisou adequar-se aos novos valores e princípios inseridos pela ordem constitucional estabelecida.
O ideal puramente liberal cedeu espaço ao social, de modo a efetivar direitos e garantias fundamentais trazidos pela constituição e passíveis de serem reivindicados pelos seus titulares. O Estado assume o papel de garantidor destes direitos e garantias, de modo a proporcionar o mínimo de condições para a sobrevivência digna ao ser humano, incluindo-se aí a educação, saúde, lazer, alimentação, pleno emprego etc.
Porém, diante das infindáveis necessidades da sociedade, o Poder Público, de forma isolada, não obtém êxito na concretização plena de tais premissas, em face das limitações orçamentárias a que está sujeito, fato público e notório.
Surge, então, a necessária interação com o âmbito privado na efetivação dos direitos e garantias fundamentais, ou seja, a conscientização da iniciativa privada de que é preciso contribuir com os aspectos sociais, educacionais e até culturais da comunidade em que está inserida.
Por exemplo, a norma ISO 26000 define a Responsabilidade Social Empresarial como a responsabilidade assumida por uma organização pelos impactos de suas decisões e atividades sobre a sociedade e o meio ambiente. As principais características da Responsabilidade Social Empresarial (RSE) são:
• políticas de pessoal que respeitam os direitos dos que fazem
parte da empresa e favoreçam o seu desenvolvimento;
• transparência e boa governança (informação pública e
contínua);
• respeito ao consumidor (produtos de boa qualidade e preços
razoáveis);
• políticas ativas de proteção ao meio ambiente (não
considerando apenas deixar de poluir ou degradar, mas
tornar-se ativo);
• integração aos grandes temas que produzem o bem-estar
comum;
• não praticar código de ética duplo, sendo necessária a
coerência entre o discurso e a prática da RSE.
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