A mitigação dos requisitos para aplicação do “Cram Down”
- Luana Delazzari
- 30 de jan. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 4 de fev. de 2020

Regra o artigo 55, da Lei nº11.101/2005 que “qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial no prazo de 30 (trinta) dias contado da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do art. 7º desta Lei.”. Nesse norte, com a apresentação de objeção ao plano recuperação judicial apresentado pela empresa recuperanda, necessária a convocação de Assembleia Geral de Credores, para o fim de proporcionar a deliberação acerca do plano e posterior votação que apreciará a aprovação ou rejeição do plano, nos moldes do artigo 56, da Lei nº11.101/2005.1.
Quando da realização da assembleia geral de credores e após as deliberações de estilo, será tomado o voto dos credores presentes, os quais decidirão pela aprovação ou rejeição do plano. Para a aprovação do plano de recuperação judicial e sua concessão pelo voto dos credores, se mostra necessário o preenchimento do quorum do artigo 45, da Lei de Recuperação Judicial e Falência, nos seguintes termos:
“Art. 45. Nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores referidas no art. 41 desta Lei deverão aprovar a proposta.
§ 1º Em cada uma das classes referidas nos incisos II e III do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembléia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes.
§ 2º Na classe prevista no inciso I do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito.
§ 2º Nas classes previstas nos incisos I e IV do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)”.
Todavia, os credores em Assembleia-Geral podem não concordar com o plano de recuperação judicial apresentado, votando pela sua rejeição, não atingindo, assim, o quórum elencado no artigo anteriormente citado, o que ocasionaria a decretação da falência do devedor, conforme previsto no artigo 56, §4º, da Lei nº11.101/2005.
Inobstante, no direito norte-americano, noticiada a inexistência de aprovação do plano de recuperação pelos credores, o juízo da recuperação promove o contraponto entre a expressão volitiva dos credores com o princípio da função social da empresa. Da ponderação, o juízo pode suprimir a vontade dos credores, impondo a aprovação do plano de recuperação judicial presentado e a conseguinte concessão da recuperação judicial. Tal supressão é denominada de “Cram Down”.
O direito brasileiro incorporou no regramento do processo de recuperação judicial o instituto do “Cram Down”. No entanto, o juízo não possui a mesma liberdade de ponderação para a aplicação do instituto, na medida em que a imposição da aprovação do plano de recuperação judicial passa pela verificação dos requisitos tipificados no artigo 58, §1º, da Lei nº11.101/2005. Assim sendo, para que o juízo proceda na ponderação, a princípio, seria necessário o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos:
“Art. 58, § 1º O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;
II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei.”.
Atendido os requisitos, o juízo poderá conceder a recuperação judicial, impondo aos credores o plano de recuperação judicial outrora rejeitado. Consoante doutrina Edilson Enedino das Chagas (CHAGAS, Edilson Enedino das. Direito Comercial esquematizado. 5 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p.1120) "[…] seria desproporcional atender à rejeição por metade das classes, quando a outro metade ou até três classes aprovarem o plano de recuperação judicial, e ainda mais quando, somados todos os credores, por possível verificar votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia geral. Diante dessa possibilidade de rejeição, visando à preservação da empresa, o §1º do art.58, da Lei n. 11.101/2005 instituiu a possibilidade de ser considerado aprovado o plano de recuperação judicial rejeitado por até metade das classes de credores".
Embora exista os requisitos taxativos, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Resp. 1.337.989, posicionou-se no sentido de que é necessário promover uma análise do caso concreto, possibilitando a mitigação do rol do artigo 58, §1º, da Lei nº11.101/2005. Nesse norte, restou asseverado que inexistindo o preenchimento integral de todos os requisitos, de forma cumulada, é possível promover a aplicação do “Cram Down”,com base na função social, do princípio da preservação da empresa, objetivando a manutenção da atividade empresarial com a imposição da aprovação do plano e concessão da recuperação judicial.
Essa mitigação possui intima ligação com o princípio da preservação da empresa, elencado no artigo 47, da Lei nº11.101/2005, o qual disciplina que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”.
Ou seja, o disposto no artigo 47 mostra-se como verdadeiro norteador de todo o processo recuperacional, cujo objeto principal é a superação da crise econômica enfrentada pela empresa, evitando-se, consequentemente, o encerramento das atividades, o que, na grande maioria das vezes, mostra-se extremamente prejudicial a comunidade na qual encontra-se desenvolvida a atividade empresarial, evitando-se, assim, o prejuízo aos trabalhadores, investidores, fornecedores, credores e sociedade como um todo. A oportunidade de reestruturação financeira e administrativa da empresa busca garantir a manutenção de emprego, recolhimento de tributos e adimplemento dos credores, ensejando a concretização da função social da empresa.
Nesse sentido, o Ministro Luis Felipe Salomão, quando do julgamento do Resp. 1.337.989, norteou, que “nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à Lei 11.101/2005, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação, sepultando o instituto.”.
Ademais, a doutrina e o direito comparado guardam o entendimento de que a interpretação das regras norteadoras da recuperação judicial devem objetivar e resguardar os benefícios sociais oriundos do princípio da função social da empresa, atrelados a manutenção da atividade empresarial quando da superação da crise ensejadora do pleito de recuperação. Os interesses pontuais de credores não pode se sobrepor à finalidade do instituto da recuperação judicial. Nesse norte, a mitigação rol do artigo 58, §1º, quando quase que efetivado em sua integralidade, possui guarida.
Justamente para evitar o “abuso da minoria”, cujo voto poderia ensejar na não concessão da recuperação judicial e decretação de falência, o direito norte-americano, posição incorporada pelo direito brasileiro, autorizou a criação de instituto com força legal para a imposição do plano de recuperação, afastando a expressão volitiva dos credores, quando possível a manutenção da empresa e a perfectibilização de sua importante função social.
Conforme João Pedro Scalzilli (SCALZILLI, João Pedro. Recuperação de empresas e falência. São Paulo: Almedina, 2017, p. 400), é viável “[…] um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização, especialmente quando somente um credor domina a deliberação de forma absoluta, sobrepondo-se àquilo que parece ser o interesse da comunhão de credores".
Novamente, o Ministro Luis Felipe Salomão, quando do julgamento do Resp. 1.337.989, elenca que, “de fato, a mantença de empresa ainda recuperável deve-se sobrepor aos interesses de um ou poucos credores divergentes, ainda mais quando sem amparo de fundamento plausível, deixando a realidade se limitar à fria análise de um quórum alternativo, com critério complexo de funcionamento, em detrimento da efetiva possibilidade de recuperação da empresa e, pior, com prejuízos aos demais credores favoráveis ao plano. Aliás, especificamente com relação ao inciso III do art. 58, justamente o da presente hipótese, a previsão de aprovação apenas com mais de 1/3 (um terço) dos credores pode agravar o problema do comportamento oportunista dos agentes ao diminuir as chances do juiz impor o plano quando identificar esse tipo de conduta.”.
Inclusive, cumpre salientar que o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2014, já havia decidido pela possibilidade de mitigação dos requisitos para concessão da recuperação judicial, mesmo com a negativa dos credores em assembleia. O Tribunal de Justiça Gaúcho partilha de idêntico entendimento.
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